segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sozinho, de novo

-Outra vez? Já vão de férias outra vez? E quanto tempo? O quêêêê!!!!


- Só me apetece é enfiar a cabeça na relva e lamentar a minha pouca sorte...

-Mas não adianta, pois não? Vocês vão na mesma... Que raiiiiiiva!!!

-Pois, fico entretido a tomar conta de tudo. Mas...e as escovadelas no pêlo?E os miminhos ao almoço? E o colinho ao serão?
Claro que posso viver com a babysitter, mas não é a mesma coisa!

- Acho que vou mesmo hibernar debaixo das folhas e só acordo para o ano! Adeus, passem muito bem!
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G.Mulligan/Chet Baker, My funny Valentine


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

As nuvens






Por momentos dançam nas colinas
ou nos olhos das rolas:
vão para o sul, procuram
a luz molhada das ilhas,
os minúsculos pés da chuva,
a crepitação do mar,
o cheiro juvenil da lenha
ainda verde e com resina,
a alma das pequenas praças,
os pardais, o sussurro das matinas.
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Eugénio de Andrade, Rente ao Dizer
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Offenbach, Barcarolle, The Tales of Hoffmann
(Berliner Phil.Classical, Karajan)



terça-feira, 24 de novembro de 2009

As pedras e os actos




Em tempo de alaridos e ignomínia dos homens apetece-me a pureza libertadora das coisas.
E procuro o silêncio na dignidade das pedras originais, nos corredores misteriosos inundados de luz, nos pátios onde os monges que não partiam fingiam viajar, meditando.
Os cavaleiros que de Cristo se chamavam serviram os homens enquanto deles se serviam. De arrogância e avidez se alimentaram, até se transformarem em estrelas cadentes, desaparecendo na terra após fugaz brilho.
Hoje, permanecem intactas as pedras e a memória dos actos.
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Mascagni, Intermezzo Simfonico de Cavalleria Rusticana
(Berliner Philharmoniker Classical, Karajan)

sábado, 21 de novembro de 2009

Ironizando com a tristeza ou o postal da despedida

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Despedimo-nos a brincar, para que as lágrimas não viessem deformar as últimas imagens. Este foi um tempo de apenas começarmos algumas conversas, de irmos ao mercado e ao teatro, de reunirmos amigos. De repente, com uma vibração especial, um mês escondeu-se dentro de nós. Aí ficará, a alimentar saudades.
Bom regresso à tua cidade dos canais, meu filho.
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Tenderly (Bill Evans)


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Tarefas caseiras

Hoje vou ajudar-te nesta tarefa chata, Fazdedono. Este prato aqui já nem precisa de ser lavado, já o lambi...olha como está brilhante!

Tens é de dar uma limpeza no fogão, que a Donaminha hoje distraiu-se com a panela. Olha bem para esta porcaria...parece impossível!

Não tens nada que agradecer, Fazdedono, foi um prazer partilhar contigo esta obrigação quotidiana! Ai de nós se não praticarmos a solidariedade masculina!
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Makin' whoopee, Gerry Mulligan/Chet Baker
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Escultura a várias mãos


Vitória de Samotrácia sem asas, mas com raízes?
Venus de Milo sem cabeça, mas com seiva?
Atena ou Afrodite, é deusa que a natureza criou .
E o homem deformou.
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Bizet, Adagietto de L'arlésienne Suite nº1
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sábado, 7 de novembro de 2009

In the mood


Vesti a minha saia de godés, calcei as sabrinas brancas e com asas na memória lá fui eu direitinha aos anos 40.
E dancei, dancei, dancei. Nunca dancei tanto sentada na poltrona de um teatro!
Ao fim do espectáculo, cansada mas feliz, nem uma onda enrugava a face da minha juventude reencontrada.
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In the Mood, Glenn Miller Orchestra











segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Sobre Gatos e Palavras

"Os gatos são palavras com pêlo. Os gatos, como as palavras, rondam à volta dos humanos sem nunca se deixarem domesticar. É tão difícil meter um gato num cesto quando temos de apanhar um comboio como ir à nossa memória caçar a palavra exacta e convencê-la a tomar o seu lugar numa página em branco. Palavras e gatos pertencem ambos à raça dos inefáveis."
(Erik Orsenna, in Dois Verões)
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(Texto oferecido por uma amiga, que por sua vez o retirou de http://acreditandonotruque.blogspot.com)
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Lionel Hampton - I surrender, dear

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Poesia, sempre


Vidro Côncavo

Tenho sofrido poesia

como quem anda no mar.

Um enjoo.

Uma agonia.

Sabor a sal.

Maresia.

Vidro côncavo a boiar.


Dói esta corda vibrante.

A corda que o barco prende

à fria argola do cais.

Se vem onda que a levante

vem logo outra que a distende.

Não tem descanso jamais.

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(António Gedeão, Movimento Perpétuo)
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Vivaldi, violin concerto op.3/6



domingo, 18 de outubro de 2009

Verões antigos


Olho esta lagoa hoje e recordo sem esforço os verões antigos. Aqueles das brumas matinais, das conversas imprudentes ao sol da tarde e dos encontros banais onde se ensaiavam inocentes jogos de sedução.



Nesse tempo a lagoa não tinha a serenidade de hoje. Era impetuosa, sôfrega, tumultuosa, como nós. E esses verões antigos, lembro-os perfeitos, imaculados e gloriosos, como a nossa juventude.


Desse tempo resta hoje este silêncio de memórias gastas, este rumor de pôr-de-sol tranquilo, belo e melancólico, este frémito de recordações longínquas, como um vôo de ave no horizonte.
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It´s easy to remember, John Coltrane Quartet




segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Matar o tempo

Que tarde mais aborrecida esta, agora que acabou a estação das eleições. Estou para aqui às voltas, sem saber que fazer ao tempo...

Só me falta lavar esta pata para a toilette estar completa. E depois, com que diabo vou eu entreter-me?

E se eu fizesse uma pequena inspecção ao pomar? Já que mais ninguém sobe às árvores nesta casa...

Por aqui parece estar tudo com ar saudável, mas nem sequer vejo um ninho. Que seca!

Espera, acolá parecem bichos a sair de uma toca. Mas são tão pequenos que mal os vejo. Vamos lá aproximar, pode ser que dêem luta!

Oh, são lagartas! Lagartas horrorosas e lentas e rastejantes a saírem de uma maçã podre! Que porcaria, nem sequer serve para caçar!

Estou muito preocupado com este desmazelo: maçãs podres cheias de lagartas molengas. Eles não sabem que uma maçã podre é para retirar logo da árvore(ou do cesto)?

Vou já fazer um relatório com recomendações à Donaminha. Isto se não é um gato estar atento numa casa de lavoura...
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My funny Valentine,Gerry Mulligan/Chet Baker



sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Anoitecer





Por vezes não é mais do que uma sombra
no soalho à frente do teu passo.
Por vezes dizes - vai-te
e arredas a cortina.
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Por vezes tem contornos de animal
cansado e ferido.
Não sabes se avançar se recuar.
Não sabes se gritar se emudecer.
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Do anoitecer não te falou o berço.
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De Pé Sobre O Silêncio, Licínia Quitério
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Valsa nº9, Chopin,( V. Ashkenazy)



segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Saudades

Tantos anos passados, mas dentro de mim continua perene a sua presença calma, o seu olhar compreensivo, o seu comportamento honrado, a sua cumplicidade reconfortante. E hoje, porque era o seu dia, ando para aqui a tropeçar nas emoções e acabei, quase sem querer, por estilhaçar o silêncio em que o guardo, intacto.
Como é persistente o murmúrio das saudades, meu Pai.
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Farewell, Chopin(V.Ashkenazy)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Tempos conjugados

Os figos são passado

O presente breve está na macieira


E na oliveira reside todo o futuro

Witchcraft, Bill Evans Trio

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Experiências


Enquanto distraída arrumo cadeiras, cubro a piscina e desmonto a rede, o Verão parte, acenando uma última cintilação ventosa.
Amanhã chegará o Outono, sem ruído mas determinado.
Como se a natureza acabasse uma experiência e começasse outra.
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Autumn (Vivaldi, The Four Seasons),



segunda-feira, 14 de setembro de 2009

As Janelas



.............................As janelas
.............................por onde entram as silvas,
.............................a púrpura pisada,
.............................o aroma das tílias, a luz
.............................em declínio,
.............................fazem deste abandono
.............................uma beleza devastadora
.............................e sem contorno.


Rente ao Dizer, Eugénio de Andrade
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Nocturno nº21, Chopin(MªJoão Pires)